Traços da autoria em Clarice Lispector, de Maria Lucia
Homem
“Mas já que se há de escrever,
que ao menos não se esmaguem
com palavras as entrelinhas.”
Clarice Lispector
Em No limiar do silêncio e da letra: traços da
autoria em Clarice Lispector, Maria Lucia Homem lança luz sobre a construção e
crise da subjetividade contemporânea ao mediar o encontro inusitado entre a
maior escritora brasileira, Clarice Lispector, e um dos pilares da psicanálise
moderna, Jacques Lacan.
Como a psicanálise pode contribuir para a renovação da
leitura crítica das obras de Clarice Lispector? Nas primeiras décadas do século
XXI, o que ainda temos a escutar de Clarice? A psicanalista, pesquisadora da
USP e professora da FAAP responde à questão de forma original ao abordar, em
seu primeiro livro, o embate entre palavra, silêncio e autoria, verdadeiro
tripé esfíngico na escrita clariceana.
O lançamento do livro pela Boitempo Editorial coincide
com os 35 anos de morte de Clarice Lispector e cumpre o difícil desafio de dizer
algo novo sobre sua produção literária que, com as vanguardas de seu tempo,
questionou tanto os cânones quanto os estilos e formatos de criação literária.
“Maria Lucia enfrenta a tensão entre a psicanálise, que busca escutar o
inaudível, e a literatura, que tenta expressar o irrepresentável, para explorar
uma busca da ‘realidade muda’. Ela teve o mérito de utilizar seus instrumentos
com tal pertinência e profundidade que faces ainda obscuras da obra de Clarice
puderam vir à luz”, afirma Yudith Rosenbaum no prefácio do livro.
Na virada para o século XX, com a formalização do
inconsciente – de uma metodologia clínica e de um aparato teórico de acesso a
ele – surge um fato incontornável: o sujeito dividido, pulsional, descentrado,
raiz de uma nova forma de escrita. Nas palavras de Freud: "o Eu não é mais
senhor em sua morada". A partir desse momento, há um constante diálogo
entre a literatura e a teoria psicanalítica.
Além de ter como base a psicanálise, com clara inspiração
em Jacques Lacan, que com Sigmund Freud compõe referência central do livro, a
abordagem de Maria Lucia é construída no campo da teoria literária e da
filosofia estética, atualizando os debates promovidos por Nietzsche, Benjamin,
Adorno, Barthes, Foucault, Auerbach, Anatol Rosenfeld e Cortázar. Esse conjunto
de referenciais teóricos desdobra-se em um estudo amplo sobre a noção de
sujeito na obra de Clarice. O livro é calcado na análise dos três últimos
romances da autora – Água viva, A hora da estrela e Um
sopro de vida, todos escritos nos anos 1970 –, nos quais se revela de forma
mais clara uma inquietação com os limites da escrita, a relação entre a língua
e o mundo, a palavra e a impossibilidade de dizer. São obras em que o sujeito
criador (o autor) se esconde na multiplicidade de vozes narrativas e na
ausência de um fio condutor.
Inspirada na proposição lacaniana de que estamos fadados
justamente a tentar falar sobre o que não se pode dizer, a autora escolheu
abordar o tema do silêncio (o que se pode, afinal, escrever?) e da autoria
(quem, de fato, escreve atrás do que escrevo?). Nos três romances, o
impronunciável manifesta-se como peça fundamental na busca de "algo além
do texto": o silêncio é a origem, causa da narrativa e, ao mesmo tempo,
polo para o qual se dirige a palavra. É a falta impulsionando a escrita que
procuraria, então, significar a inapreensível totalidade do vivido.
Já a questão da autoria, como segundo eixo determinante
para o trabalho, é retomada em sua vertente problemática, desde os primórdios
do romance dito moderno. O romance estruturalmente clássico – que buscava
representar o universo subjetivo do herói individualizado – fica estremecido em
suas bases sólidas e já estabelecidas. Abre espaço para uma maneira de compor
em que personagem, narrador e autor se interceptam continuamente e na qual o
silêncio aparece como ponto de fuga da narração, arrastando o próprio movimento
da escritura. O pacto ficcional se altera, e o jogo entre silêncio e palavra se
revela.
TRECHO DO LIVRO
“No limiar do silêncio e da letra. Traços da autoria. O
título já oferece a pista: o conflito constante na obra clariceana vivido por
um autor entre o silêncio que circunda toda linguagem e a palavra que busca se
enunciar. Como se estivéssemos cercados de água silenciosa por todos os lados e
tivéssemos a ilha palavra a nos ancorar e propiciar algum fôlego para
prosseguir a viagem. Vez ou outra, um continente, a ilusão de solidez contínua
e definitiva, e, logo em seguida, a consciência de que ele também não passa de
uma ilha. Ilha grande, mas também cercada por um mar de silêncio,
inevitavelmente, a maior porção da superfície desse nosso mundo. E nessa
dinâmica, a construção constante e infinita do lugar do autor, que se refaz a
cada vez.”
SOBRE O AUTOR
Maria Lucia Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo
Diversitas FFLCH/USP e professora nas áreas de Psicanálise, Cinema, Literatura
e Comunicação da FAAP. Tem pós-graduação em Psicanálise e Estética pela
Universidade de Paris VIII/Collège International de Philosophie e pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
FICHA TÉCNICA
Título: No limiar do silêncio e da letra
Subtítulo: traços da autoria em Clarice Lispector
Autor: Maria Lucia Homem
Prefácio: Yudith Rosenbaum
Orelha: Vladimir Safatle
Quarta capa: Joel Birman
Editora: Boitempo
FONTE: Assessoria / ACS Comunicação
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