Luta de classes contemporânea

          por Radha Barcelos*
          Logo na primeira parte de O som ao redor, uma personagem supersticiosa pede desconto no aluguel do apartamento que pretendia morar, pois sente um mau presságio. Não por coincidência, o espectador também passa os 131 minutos de duração do filme com a mesma sensação de que algo terrível está por vir, graças aos artifícios sonoros de filme de terror que o cineasta Kleber Mendonça Filho usa para tecer a sua rede de pequenas unidades narrativas conectadas pelo mesmo espaço físico: uma rua num bairro abastado de Recife. Um grande mosaico social é orquestrado ali através da convivência entre patrões, empregados, vigias e vendedores ambulantes.
        Além de cidade natal do diretor, que faz a sua estreia em longas de ficção, a capital pernambucana é também uma locação perfeita para mostrar os efeitos da desigualdade secular que assola o país, pois apesar de suas modernidades e efervescência cultural, ainda preserva seus coronéis e capatazes. O cenário é de uma velada luta de classes contemporânea, sem maniqueísmos, onde o pequeno burguês culpado pelo passado explorador de sua classe adota um discurso politicamente correto em relação a seus empregados, mas na prática pula fora de tomadas de decisões importantes, como a demissão de um porteiro, para encontrar a namorada. Ou a moradora que na reunião de condomínio defende a demissão do mesmo porque sua Veja está vindo fora do plástico (uma cena memorável e uma frase já antológica). Ou o porteiro que risca o carro da moradora que o trata mal. Um clima de tensão e desconfiança paira no ar como um sintoma global do estilo de vida predatório que a sociedade adotou há tempos. O medo é onipresente até nos lugares onde não se devia sentir sua presença, como no ambiente bucólico. Os passos ouvidos no andar de cima de uma casa no meio do mato causam paranoia nos personagens do mesmo modo que a chegada de vigias noturnos oferecendo seus serviços na rua deixam os moradores alertas. A cultura do terror no qual estamos mergulhados é mãe da violação de privacidade, da política da vigilância, da mania de perseguição, da síndrome do pânico, da manutenção da neurose. Tememos o outro porque tememos nós próprios.
            O som ao redor se aproveita de um tipo de terror peculiar, que não espera a noite cair para emergir, pois não é proveniente de elementos externos como seres sobrenaturais ou serial killers, mas dos fantasmas internos de cada um. Trata-se do terror que acontece de dia, a toda hora, porque é psicológico, típico de grandes centros urbanos. A divisão da obra em três atos (cães-guarda, guardas-noturnos e guarda-costas) marca bem a gradação desse sentimento. Essa paranoia que entra nos pensamentos dos cidadãos sem pedir licença também fura a fotografia realista do filme e jorra na tela na forma de flashes de surrealismo. Na cachoeira que de repente expele águas vermelhas, no sonho da menina que é invadido por assaltantes, no moleque esquivo (real ou ilusório?) que aparece em cima de telhados e dentro de casas. Da mesma maneira que o zoom rápido imprime o impacto do olhar vigilante. São recursos estilísticos que pontuam sensações vividas no cotidiano sem cair no experimentalismo visual, prática comum no cinema dito de arte brasileiro que acaba afastando o público das salas. Pelo contrário, O som ao redor tem a capacidade de dialogar com seu espectador de forma simples e direta, sem por isso ser pobre artisticamente. Ainda consegue alternar momentos cômicos para dar uma aliviada, cujo núcleo da dona de casa entediada é o responsável, propiciando cenas inigualáveis com ela se masturbando na máquina de lavar ou jogando a fumaça da maconha dentro do aspirador de pó para não se explanar para a vizinhança (numa referência ao seu badalado curta Eletrodomésticas de 2005).
            O cineasta assume uma estrutura de filme de suspense com os personagens se comportando como jogadores numa mesa de poker, onde algumas cartas estão viradas para cima e outras não. É necessário conhecer essas cartas para que o jogo narrativo avance, entretanto, por causa do excesso de blefes, o filme parece não andar em linha reta, dando voltas em torno das situações rotineiras de seus pequenos núcleos. De repente alguns personagens mostram seus ases na manga, trazendo informações inesperadas e tudo se encaixa rapidamente para um grand finale. Aquela sensação de que uma bomba estava prestas a explodir, explode. Literalmente. E uma verdade vem à tona: mesmo com a euforia provocada pelo progresso na economia ainda paira sobre o Brasil a sombra do passado.
           
Ficha Técnica
Diretor: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Irandhir Santos...
Gênero: drama
País: Brasil
Duração: 131 minutos

(*) Colunista Jornal Petrópolis em Cena


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