Profa. Dra. Míriam Heidemann


Profa. Dra. Míriam Heidemann*


O comportamento humano pode ser de uma solidariedade inimaginável, de uma insensibilidade cruel, ou de uma apatia absoluta. Neste contexto de diversas percepções pessoais, a sociedade, num somatório ou denominador comum, manifesta-se, quando surge um possível escândalo, como uma quebra de rotina: até então o problema fica escondido, nas rebarbas da história.

A hora da vez acontece no Estado de Santa Catarina, quando uma menina de 11 anos consegue apoio judicial para um aborto, com 22 semanas de gravidez. A gestante é uma criança, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e uma pré-adolescente, na visão da Organização Mundial da Saúde. 

Pelo ECA, qualquer relação sexual com menores de 14 anos pressupõe uma situação de estupro: estupro de vulnerável. 

Este caso se soma a muitos outros, no Brasil. Em 2020, tivemos 17.570 nascidos vivos de mães, meninas entre 10 e 14 anos. Em 2019 foram 19.370 bebês. Em 2010 foram 27.049 (Fonte: DATASUS).

Cada menina destas, aqui em estatística de “mães com filhos nascidos vivos”, teria história para contar, sua história, a mais importante de todas. Quantos casos de estupros de vulneráveis aqui são quantificados pelas estatísticas oficiais de nascidos vivos no país?

Não temos ideia hipotética sobre os abortos realizados por tantas outras meninas brasileiras. Elas não aparecem, nem como número nas estatísticas.  Afinal, não temos estatísticas sobre aborto, porque ele é proibido no Brasil. 

Vale lembrar que as relações sexuais nesta idade podem estar relacionadas a abuso físico, psicológico e sexual. Uma adolescente, teoricamente, poderia consentir numa relação sexual, por muitas razões do seu contexto familiar e social, ou ser forçada a isso. A falta de informação e de educação é a grande responsável por esta história.

O sistema educacional brasileiro contempla a sexualidade adolescente em seus projetos pedagógicos?  Qual escola liberta o professor para falar sobre educação sexual? Há professores preparados para esta missão, dentre tantas mais sob sua responsabilidade? Os profissionais de saúde são os que mais se aproximam desta realidade: acolhem, investigam, participam, educam, medicam, acompanham. 

A legislação brasileira proíbe o aborto. Entretanto, no caso da Menina de Santa Catarina, ele foi autorizado, uma vez que se enquadrou como estupro (Artigo 128 do Código Penal). A legislação não indica até qual o período gestacional este aborto possa ser realizado.

Os profissionais da saúde trabalham segundo a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulher Adolescente (Brasil, Ministério da Saúde, 2012). Assim diz o documento na página 76:

“Não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional. A mulher deve ser informada da impossibilidade de atender a solicitação do abortamento e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar.”

O judiciário não reconheceu as  normas oficiais de assistência à saúde, e definiu o futuro da menina, sem respeitar o trabalho de gerações, no que concerne à saúde da criança/adolescente.

A Menina de Santa Catarina não pode ser a pessoa que será julgada. Pode ter sido uma relação consensual? Sim. Quem seria o autor do crime? Porque mesmo consensual, é crime. Isto fica para a polícia responder.

Os responsáveis legais pela Menina de Santa Catarina são sua mãe e seu pai/ padrasto. Fica evidente o comportamento de negligência, porque a menina sofreu os abusos em sua casa, num local que deveria ser de proteção. Aliás, proteção esta, obrigatoriamente, ofertada pelos pais.

Aqui se insere o conceito de maternagem. Qualquer mulher pode ser mãe, daí o conceito de maternidade. Entretanto, poucas desenvolvem a maternagem. Maternagem é zelo, dedicação, abnegação, proteção, responsabilidade, amor. Algumas mulheres nascem com o dom da maternagem. Outras, o constroem através da sua experiência de maternidade, ou mesmo antes dela.  Maternagem é aprendizagem e arte. O mesmo se aplica ao conceito de paternagem.

A Menina de Santa Catarina deveria ter os cuidados da mãe. Onde estaria a mãe nesta história? Ela, em nenhum momento, percebeu que havia algo diferente com a filha?

A família optou pelo aborto, mesmo orientada sobre a complexidade do procedimento.

 Ela voltará para casa, a Menina de Santa Catarina? Voltará para o mesmo ambiente onde engravidou? Qual será o seu futuro? Uma nova gravidez?

Mais uma brasileira, que nestas circunstâncias, trocará as brincadeiras de criança e seu tempo adolescente pela dúvida, pelo medo, e, talvez, por uma vida precoce do “ser mulher”!

 (*) Enfermeira e professora da UNIFASE/FMP.

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